Monday, October 25, 2004

Estrela, doce Estrela...

Ia ser mais um dia...
Como todos os últimos dias, desde que para ali viera.
Junto à janela, de luvas e manta pelos joelhos, David fixava o céu, de olhar perdido...como se estivesse à espera...sempre à espera.
Agora tinha tempo, todo o tempo do mundo, para recordar a pressa com que tinha vivido a sua vida...
Os segundos faziam minutos, os minutos faziam horas e...por vezes David não sabia se morria ou vivia...
E a sua mente, habituada a uma correria desenfreada, levava-o pelos caminhos do passado, à procura de algo...que lhe tornasse aqueles dias mais felizes...
E aquela voz, que lhe vinha da alma, teimava em repetir:
‘’Foste um homem de sucesso. Fizeste grandes negócios...tiveste muitas empresas...muitos funcionários...uma vida cheia de êxito...só te esqueceste de ser feliz...!’’
E era esse martelar constante que o fazia chorar de solidão...
Agora, tardiamente...
Tinha sido tão amado...mas não tinha tido tempo para amar...
Estrela, doce Estrela...
E nessa noite, teve por companhia, o mesmo sonho de sempre...

‘’Contemplava-a de longe, junto ao pontão...
Soprava um vento quente de Outono... e o sol, na despedida, pintava de prata, aquele mar imenso, que ele adorava...
Ela parecia fazer parte daquele cenário...como se o mar só fosse belo, junto dela...
David lamentou não ser pintor...teria eternizado na tela, aquele momento...
Aproximou-se...
Ela voltou-se e sorriu-lhe.
- Sabia que vinhas.
Sentiu-se perdido.
Ia partir para muito longe e sem data de regresso...
- O que tens? – perguntou, preocupada – Estás tão pálido.
- Nada, não se passa nada... – mentiu-lhe.
E acrescentou, a custo...de voz tremida...
- Só vim...para te dizer que és a pessoa que mais amo na vida...
E, naquele abraço, ele fez a despedida mais dolorosa de sempre...’’

Acordava sempre inquieto...
Era a única página do seu passado, que não tinha sido concluída...
Passaram-se muitos dias, sempre com a mesma cor e o mesmo cheiro...e junto à janela, David continuava a viajar...
As mesmas luvas, a mesma manta, a mesma voz...que o levava de novo à solidão...
Sob a luz do sol, daquela manhã de Primavera, David respirava o aroma das flores...
Era a única altura do ano, em que trocava a janela pelo jardim...
Sentia-se estranhamente sereno, como se finalmente, descobrisse a fonte da sua alegria de viver...
Alguém se aproximou, muito perto...
David adivinhou...
Teve medo... muito medo de levantar os olhos...

- Ainda sou a pessoa que mais amas na vida?

- Estrela, doce Estrela...

Friday, October 22, 2004

O tempo mudou

O tempo mudou…
Agora já não o meço em horas, minutos e segundos…
Já não há medidas estanques, fórmulas definidas e verdades absolutas…
O arco-iris deixou de ter apenas sete cores…
A minha rua já não tem o mesmo nome…
A noite deixou de ser apenas noite…
E o dia…apenas dia!
E até aquele pedaço de céu que te cobria…

O tempo mudou…
Um instante pode levar horas…
Uma hora…um instante!

Thursday, October 21, 2004

A nossa resposta

O trilho da vida nem sempre leva o rumo mais certo.
Pelo menos é isso que pensamos quando achamos que nada liga com o nosso contentamento.
Fazemos silêncio, meditamos, revolvemos num passado envelhecido pelas nossas insistências de o tornar bem passado...e procuramos ainda salvar ( coisa nenhuma) à custa duma luta que já não tem sentido.
Aí achamos que é altura de lamentar.
E voltamos a imergir num tempo qualquer.
Como se isso nos desse tranquilidade e uma resposta feita salvação.
Mas as coisas surgem sem escolha e em silêncio e...não nos permitem um balanço descomprometido.
Faz parte do nosso papel de vida.
Pena nunca nos terem dito que era também assim que se crescia...que se lutava contra regras e tradições...e essencialmente que se abdicava dum protótipo de vida desenhado na nossa infância.
Depois lastimamos os tempos de espera, o cansaço, a raiva desmedida, a amargura de cada manhã sem esperança e... queremos destruir um tempo ao acaso...como se de um duelo se tratasse.
Mas o trilho da vida continua...à espera que lhe mudemos o rumo.
E quando pensamos que essa mudança não está ao nosso alcance...surge não se sabe como nem de onde...um caminho novo, uma outra direcção...um outro destino.
Sentem-se aplausos na alma e um acordo silencioso no pensamento.
E tentamos voltar de novo no passado.
Só para ir, em silêncio, buscar algumas forças.
Achamos que temos o dever de fazer delas uma certeza que é nossa por direito.
Para que tudo dê certo com o nosso novo rumo.
Aí percebemos que abdicar desse tempo, mudo de nascença, não é renúncia...é urgência.
Agora já não há remédio.
Já não há silêncios de culpa...nem recortes na memória.
Há, finalmente...a nossa resposta!

Wednesday, October 20, 2004

Silêncio de culpa

Maria continuava sentada na beira da cama.
Tinha acabado de separar todas as roupas do marido e ainda lhe custava a acreditar que iria ficar só.
Não tinha sido um diálogo fácil. Carlos tinha feito todas as tentativas de reconciliação, mas o desgaste dos últimos anos, tinham destruído o que Maria sentia de mais belo, dentro de si.
Não era justo viver cansada, com apenas 35 anos.
Sentia-se perdida, dividida e culpabilizada...como tantas outras mulheres de alcoólicos.
À medida que os anos passaram, foi perdendo o poder de controlar certas situações e rendia-se, completamente impotente, a um inimigo sem rosto, sem corpo, mas muito mais poderoso que um gigante.
Já não tinha lágrimas.
Já nem sequer tinha forças para se lamentar.
O que mais queria era um ponto de partida, para mudar a sua vida.
Mas esse dia, finalmente tinha chegado e agora Maria sentia um misto de alívio e medo... por se livrar da dor, essa sua fiel companheira de vários anos e pelo receio de não conseguir apagar algumas recordações.
Afagou o gato, que ronronava cúmplice, no seu colo.
E relembrou, com mágoa, a discussão do dia anterior.
- Ontem, voltaste de madrugada. Senti-te abrir a porta, à décima tentativa.
- Lá vens tu outra vez, com a mesma conversa.
- Ai sim? Não gostas? Então, hoje é o teu dia de sorte.
- Ironias... a esta hora?
- Não é brincadeira, Carlos. Acabou. O teu tempo esgotou...
-..........
- Já não me importa o teu silêncio de culpa.
O rosto dele tinha-se transfigurado. Sentiu-se apanhado numa rede sem saída.
Bateu secamente a porta da rua e Maria sabia que nessa noite, ele já não voltaria.
Precisava ser forte.
Precisava cuidar da seara da sua vida.
Precisava ver crescer os seus frutos.
Chorava por um turbilhão de sentimentos contraditórios.
Era simplesmente um esvaziar dum tempo perdido, sem sentido.
Estava tão absorta, no seu desencanto, que não se apercebeu dumas mãozitas minúsculas, que abriam suavemente a porta e se juntavam às suas, num toque leve e doce.
Olhou o rosto lindo do seu filho, que lhe tentava dizer tanta coisa, naquele olhar.
Abraçou-o junto ao peito e sentiu naquele abraço, a tal força que procurava dentro de si.
- Mamã...
- Diz, meu filho...
- Não chores...quando for grande, caso contigo e vou fazer-te muito feliz!

A Insónia...

Quando abriste os olhos e encontraste os meus,
não entendeste a minha insónia...
e eu...
como uma criança apanhada em flagrante,
corei...
e não tive coragem de te dizer que,
olhar o teu rosto adormecido,
era a única maneira
de
imortalizar aquela noite!

Tuesday, October 19, 2004

O homem que tinha alma de Condor

Roubaram as asas ao Condor.
O Condor morreu.
De dentro do seu corpo inerte, nasceu um menino.
O menino cresceu com a alma do Condor.
E fez-se um homem.
Um homem com pés de ferro.
A terra prendia-o ao chão, mas todos os dias, o seu coração voava com as asas do Condor.
E ele deixava-se ir.
E era nessas asas que ele levava o seu coração para longe, onde tudo era novo e diferente.
O homem não gostava dos seus pés de ferro.
Sentia dentro de si uma voz que lhe dizia:
"Os teus pés não são de ferro, são de algodão. Apenas aguardam a tua coragem para abrires o teu coração e te libertares. Depende de ti."
Um dia, o homem teve coragem e olhou os seus pés.
Os seus pés eram de algodão, mais leves do que uma pena de pavão.
Olhou os seus braços e encontrou as asas do Condor.
O homem soube que tinha chegado o momento.
E voou.
Voou durante dez dias e dez noites.
Voou sobre os mares, sobre os rios, sobre os povos esquecidos, sobre os povos lembrados e quando as suas asas já não aguentavam mais, descansou numa praia.
E adormeceu.
E sonhou.
Sonhou com os seus pés de ferro.
Sonhou com a terra que o prendeu.
Sonhou com os amigos.
Sonhou com o Condor.
E quando acordou, não estava só.
"És um homem corajoso, disse o Condor. Passaste muito tempo da tua vida a sonhar com este voo real. Conseguiste a liberdade. Agora, escuta com atenção: Não precisas das minhas asas para voar. Deixa os teus pés terem a liberdade da tua alma e poderás ser livre e voar sempre que queiras. É esse o grande segredo do Homem. Em contrapartida, nuna abandones a terra. É ela que te sustenta o corpo, é ela que te oferece o amor e a amizade que precisas para alimentar a tua sede de ser diferente, de querer ir mais além".
O homem pegou nas suas asas e devolveu-as ao Condor.
O Condor partiu.
E o homem cresceu ainda mais e abraçou aquele mar, aquele sol, aquela areia tão branca e ali mesmo descobriu que ...
...ser livre é ter alma de Condor.

Monday, October 18, 2004

Foto 2

Do outro lado da rua, numa casa em ruínas...
vivia uma velho...
a filha do velho...
a neta do velho...
um cão...
um gato...
uma árvore que se carregava de ameixas vermelhas uma vez por ano e...
uma porta enorme e pesada que se fechava com estrondo, sempre que eu me conseguia "escapulir" para lá.
Ninguém entendia o que me atraía ali.
Um dia o velho, a quem eu chamava avô por empréstimo, morreu.
Mas tudo o resto ficou igual, excepto a vontade de me refugiar lá que era cada vez maior.
A mãe era muito alegre e o cão e o gato conversavam com a dona.
A filha, sempre rodeada de presentes (oferecidos por um pai ausente), era uma menina triste...a quem faltava tudo e nada e a quem eu oferecia gratuitamente todos os sorrisos do dia.
De vez em quando a menina não me deixava brincar e eu fugia.
Só voltava com a promessa de finalmente ir ver o saco de brinquedos que existia por detrás duma porta velha de fechadura ferrugenta, por debaixo da escada.
Mas era apenas uma promessa.
Ainda me lembro da tristeza que senti quando a menina mudou de casa e abriram finalmente aquela porta mágica.
Eu já gostava tanto daquele saco!
Tinha imaginado, durante tanto o tempo, o sabor de tocar naqueles brinquedos, um por um...
Nesse dia chorei...
E hoje ainda não sei...
Se pela partida da menina...
Se por me terem "roubado" uma saco de "sonhos", que nunca tinha existido...

Friday, October 15, 2004

Foto 1

Naquela altura, vivia "paredes meias" com essa coisa do medo.
Mas...era como se fosse proibido assumir esse tipo de sentimentos.
Era algo que só os fracos podiam sentir e reprimia-se e recalcava-se assim, sem direito a expansão, os pensamentos, as imagens, os receios...obrigavam-nos a "engolir" os tais monstros (até simpáticos) de antigamente, sem lhes conhecermos o rosto.

O fotógrafo da minha terra era o homem que eu mais temia.

Por diversas vezes me enfeitaram de laços e laçarotes, de caracóis e sorrisos ensaiados...na tentativa (sempre infrutífera) que o sujeito me conseguisse sacar um simples retrato.
Mas os meus pontapés e gritos estridentes faziam desistir o mais persistente.
E mais uma vez saía vitoriosa.
Mas magoada...porque ainda ninguém tinha entendido que o que o homem queria...era mesmo roubar-me a cara...a cara toda para a enfiar naquele bocado de papel.